As deficiências físicas podem limitar os corpos de seus portadores, mas não seus espíritos e mentes.
Não coube aos portadores de deficiência a escolha em adquirí-las, mas, com certeza, cabe a escolha de como relacionar-se com elas.
Vale a pena ler este texto da escritora e vereadora paulista Mara Gabrilli – para quem não sabe, tetraplégica – onde ela fala sobre o próprio corpo.
Não coube aos portadores de deficiência a escolha em adquirí-las, mas, com certeza, cabe a escolha de como relacionar-se com elas.
Vale a pena ler este texto da escritora e vereadora paulista Mara Gabrilli – para quem não sabe, tetraplégica – onde ela fala sobre o próprio corpo.
Meu corpo pode tudo
Depois da quebra da vértebra e do machucado nos feixes de nervos, meu corpo nunca mais foi acessório e se transformou em fundamento.
Meu corpo é a minha área de contato com o mundo, foco de constrangimento e interesse de olhares. As pessoas se mostram curiosas perante o meu funcionamento fora de padrão. Um estilo próprio que percorre o mundo sem limite de distância, com um organismo ousado de saúde.
Até antes de quebrar o pescoço, tinha um corpo ausentemente disponível. Cuidava bem, mas era um acessório funcional e vistoso. Um corpo que fazia de si presença prolongada quando doía ou quando excedia nas dimensões do meu juízo. Depois da quebra da vértebra e do machucado nos feixes de nervos, ele então se transformou num ente presentemente indisponível. Hoje, a indisponibilidade foi dando espaço à reconstrução interativa do movimento. Meu corpo se delata pra mim mesma, e confessa que, no modo funcionamento, ele pode tudo. Nunca mais foi acessório e se transformou em fundamento do meu tempo. Portanto, me dedico comprometidamente a ele. Só tiro a atenção parcial dele para cuidar de outros corpos. É meu compromisso com a sociedade e a felicidade.
Você já ficou deitado na horizontal ou de cabeça para baixo, deixando o corpo entrar na mente? Faço isso todo dia, mas fiz hoje especialmente escrevendo este texto. Sinto facilitar o caminho dos nervos aferentes, que alimentam o cérebro de sensibilidade corporal. E ainda irrigado dos vários fluidos desperta desejo em diferentes cadeias musculares, até então em repouso.
Se você for do tipo andante, basta levantar e sair andando. Eu, que sou do tipo cadeirante, preciso de preparo para andar. Começo três horas antes, com alongamento, imersão na água, preparo de eletrodos para eletroestimulação e chegada ao local. Preciso de quatro pessoas para auxiliar na marcha. E, além de tudo isso, ainda tenho custo. Eu pago pra andar, pago pra pedalar, pago até pra fazer xixi e cocô! Meu corpo ficou caro!
Gozo prolongado
Só que você levanta e sai andando. E, depois, nem lembra mais disso porque já entrou nas questões automáticas integradas ao seu metabolismo. Para mim, andar 20 minutos fica impresso no imaginário do meu corpo, no tônus muscular, em todo o sistema cardiorrespiratório e em tudo aquilo que faz aumentar o ar que eu respiro. Meu corpo gosta do calor da água quente, do sol, adora o contato rápido, o contínuo, o delicado ou o firme. Venera o toque de olhares e do vento, que me proporciona um sentir enigmático na pele. Sofre com a inércia, com os atos bruscos e com o esquecimento.
As minhas formações receptoras talvez recebam quantidade diminuída de fluxo de energia elétrica voluntária, comparada ao padrão. Porém, devem ter qualidade genuína ao desempenhar a função de levar a informação ao sistema nervoso central. Isso é perceptível na sensação do toque – que, em meu corpo, continua mesmo depois de interrompido o momento de contato. A dor se expressa de forma prazerosa. A única forma que suscita desconforto é aquela que não consigo descobrir de onde vem. A dor é boa, mas o desconhecimento é angustiante. O gozo se mantém no platô por muito mais tempo. Eu ganhei um desafio delicioso de experienciar, e toda transformação que provoco no meu corpo e, por conseqüência, em mim todinha é a mesma que desejo para o mundo em que vivo.
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